A partir de “um invejável lugar”

Poesia Pública é uma iniciativa do Museu e Bibliotecas do Porto comissariada por Jorge Sobrado e José A. Bragança de Miranda. Ao longo de 50 dias publicaremos 50 poemas de 50 autores sobre revolução.

Ouça este artigo
00:00
02:04

a mãe que castigava por igual
perdoava a diferença

quanto mais imensa a mãe
e a mão tremendo
menos pesaria o mundo
entregue aos meus pensamentos
(Regina Guimarães)

Uma qualquer mulher
ainda não plena
sujeita poética
tem de encarar a mãe
e libertá-la de Electra

Passa-se a tragédia
entre fêmeas e atenas
mestiças, metecas, por regra
e o regresso secreto
do recalcado Orestes
é um fresco de batalha
numa parede:
soldados e marionetes.

Filha, não vês
que erro na revolução
são os braços de ferro
com todos mortos
todos maus ou ambos
no chão
a glória um banho
manchado onde não
se salva um órfão...

As sujeitas poéticas
gostariam de figurar
no retrato da história
brandindo muito os braços
como moinhos brancos
de trigo mouro

As sujeitas da história,
quando filhas
das sujeitas poéticas,
desarmam
a léguas a redondilha
dialética. Assim é difícil
desencaminhá-las
da desproporção entre
as cheias leviatânicas
e a beleza das ideias

Penso nisto quando elas
tomadas de causa
iradas contra a caldeira
da casa dos átridas
bloqueiam as artérias
da cidade
sob a ira das quadrigas

e penso em quando o petróleo
era como no Dallas:
brincava com o meu irmão
aos americanos e árabes
na idade do dólar
das séries
na inocência climática
da ciência
do dolo das espécies

Ocasionalmente com uma fronha
e uma bandelete a fazer
de hijab, o meu irmão
punha-me num lugar
de dependência.
        E a mãe,
chamada pelo arraial,
franzia-se com a querela
e dobrava flexível
a chinela por igual

perdoando a diferença
é difícil também
ver as filhas como rés
na nossa vez

Uma mulher obscuramente
filha é uma mãe aflitamente
mãe


Margarida Vale de Gato traduz, escreve, é professora na Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, e investigadora no Centro de Estudos Anglísticos da mesma Universidade. Traduziu Michaux, Sarraute, Twain, Kerouac, Ferlinghetti, Munro e Glück, entre outros. Ensina e coordena a leccionação em Estudos Norte-Americanos. Publicou os livros de poesia Atirar para o Torto (2021), Lançamento (2016) e Mulher ao Mar, um projecto em curso desde 2010, cuja última edição é Mulher ao Mar e Corsárias (2023).

Sugerir correcção
Ler 1 comentários